L’AMORE INDUSTRIOSO

Opera em três actos de João de Sousa Carvalho (1745-1798)


        ..."Mas neste processo, as razões musicais terão tanto ou mais peso do que as sociais. Na verdade, a afirmação da opera bufa italiana é um dos factos salientes da história musical e teatral das décadas de 1750-60 e o que se referiu atrás vem também provar que Portugal foi um participante de pleno direito deste fenómeno. É este o ponto da situação, quando João de Sousa Carvalho regressa de Itália em 1767, sendo por isso sintomático que a sua primeira ópera representada na corte pertença precisamente ao género buffo. Este é abandonado na sua produção subsequente, mas a distribuição das suas apetências criativas pelos dois géneros é comum à maioria dos compositores da época.

        L'Amore Industrioso e as convenções da opera buffa:

        L'Amore Industrioso foi estreada no Real Teatro da Ajuda em 31 de Março de 1769, para celebrar o aniversário da rainha D. Mariana Vitória, mulher de D. José. De acordo com vários documentos da época, a ópera foi encenada com um certo esplendor, contando com uma numerosa figuração (75 pessoas!), que teria sido recrutada entre os soldados da guarda do palácio. A cenografia era do arquitecto Giacomo Azzolini, sucessor de Giovanni Bibiena, e o guarda-roupa de Paolino Solenghi. O maquinista era Petronio Mazzoni, também arquitecto responsável pelas obras dos teatros reais. Foi cantado por alguns dos mais prestigiados cantores da corte: Giovanni Leonardi (Basílio); Giovanni Baptista Vasques (Giulietta) - o único português -, Giuseppe Orti (Bettina), Luigi Torriani (Armidoro), Giuseppe Romanini (Contessa Eugenia), Francesco Cavalli (Asdrubale) e Lorenzo Giorgetti (Frontino).

        Em relação à componente instrumental, Sousa Carvalho contou com a Orquestra da Real Câmara, uma das maiores orquestras de corte da Europa - entre 1773 e 1782 chegou a ter 51 instrumentistas - e participante habitual de todas as manifestações musicais da corte, desde as óperas e serenatas à música religiosa. A orquestração total de L'Amore Industrioso compreende 2 flautas, 2 oboés, 2 clarins (trompetes naturais agudos), 2 trompas e cordas, portanto a composição da orquestra clássica à excepção dos clarinetes. Aparece também por vezes uma parte de fagote. O emprego dos sopros é alternativo e não participa nunca da totalidade da orquestração.

        O sucesso de L'Amore Industrioso foi de tal ordem que a ópera foi representada dez vezes em 1769. Designada como "dramma giocoso" na partitura figura como "dramma per musica" no programa, impresso pela oficina de Miguel Menescal da Costa. Desconhece-se o autor do libreto embora tenha sido ocasionalmente atribuído a um poeta de nome Casori, uma vez que um texto da sua autoria com o mesmo título teria sido posto em música por outros compositores deste período.

        Para o êxito teria contribuído não só a atractiva música de Sousa Carvalho, mas também o divertidíssimo libreto, cuja construção dramática "recorda" os futuros desenvolvimentos mozartianos. A intriga inclui vários dos ingredientes típicos da opera buffa italiana, focando a ascensão da burguesia e o declínio da aristocracia, os dilemas entre o amor e o dinheiro, a juventude e a velhice... numa atribulada sucessão de confusões, enganos e disfarces. A astúcia e a cumplicidade dos criados, o apaixonado que se disfarça para estar perto da sua amada, a cena do falso professor de música on o notário fingido são elementos recorrentes de várias óperas e peças teatrais do século XVIII, tendo sido frequentemente apontadas paralelos com O Barbeiro de Sevilha ou As Bodas de Fígaro, nas respectivas versões teatrais e musicais.

        Mario Vieira de Carvalho descreve deste modo as implicações sociais do libreto: "o 'esclarecido'Armidoro, um 'secretario francês' ao serviço de um burguês, age, em aliança com a filha deste (Julieta) e os criados (Betina e Frontino), tanto contra a burguesia em ascensão como contra a nobreza decadente. Na burguesia é ridicularizada a tendência para imitar a nobreza tradicional e o desejo de se ligar a esta através do casamento. Na nobreza é ridicularizada a exibição fictícia de um bem-estar e de uma riqueza perdidas assim como a tentativa de encontrar uma saída, designadamente através da celebração de casamentos com a burguesia - apesar da implícita 'descida de condição"'. Salienta também o tratamento dado aos papéis femininos (incluindo o da condessa), os quais, "como nas futuras Bodas de Figaro de Mozart e Lorenzo da Ponte são dotados de maior profundidade psicológica."

        Esta teia de relações traduz-se musicalmente pelo predomínio dos concertantes ou cenas de conjunto, o que aponta para a maior vitalidade e fluência dramática que se começa a manifestar nas obras da segunda metade do século, em especial na opera buffa, em detrimento da mera alternância recitativo/ária da ópera dos finais do barroco. Após a abertura, que seque o típico modelo napolitano, com a sucessão de andamentos Allegro-Andante-Allegro e que apresenta uma escrita instrumental consideravelmente mais elaborada que os números subsequentes, o 1° acto abre lopo com um quarteto (Armidoro, Julieta, Frontino e Bettina) "É l'amore un bizzarro Fanciullo..." As cenas de conjunto dominam até ao final, tendo, como é habitual, especial ênfase na conclusão dos actos, com um exemplo paradigmático no concertante a seis do 2° acto. Algumas passagens desta ópera tornaram-se especialmente célebres, entre as quais o delirante serão musical do 2° acto - principalmente a passagem em que Basílio e o Conde se decidem sentar ao cravo para cantar o estribilho da canção escolhida pelo (falso) professor de música -, a autêntica "chanson à boire", com o refrão "Allons touchons, / Allons bouvons, / Flon, flon, flon, flon" que Armidoro canta no final do 1° acto ou a ária da mesma personagem "Mia Signora, alla Francese / Imparare a far l'amore", cujo sucesso se deve ter prolongado bastante no tempo e teria sido executada várias vezes fora do contexto da representação, ja que existem várias cópias soltas.

        A música de Sousa Carvalho caracteriza-se, em geral, pela sua ligação às tendências estéticas do pós-barroco, com predomínio do chamado "estilo galante", caracterizando-se por um ritmo harmónico lento e uma fecunda inspiração melódica, que muitos associarão a um certo recorte mozartiano. Acontece que Mozart não criou um estilo novo, apenas elevou a um nível superior os elementos da música da sua época, presentes na produção de uma plêiade de compositores hoje quase esquecidos.

        Num certo sentido, na opera buffa pode ver-se um equivalente teatral do estilo galante instrumental. Da mesma forma que este se afasta do contraponto, aquela afasta-se de uma expressividade eloquente e empolada, com as suas audácias harmónicas, tensões rítmicas e figurações vocais virtuosísticas. O impulso em direcção à simplicidade e à naturalidade do estilo galante encontra-se, no campo vocal, na opera buffa, pelo menos nas suas origens. O resultado é uma simplificação do detalhe, a regularidade rítmica, uma planificação mais racional da harmonia ou a valorização da melodia como principal veículo expressivo.

        Todavia, só a divulgação e os futuros estudos em torno das várias óperas de Sousa Carvalho permitirão averiguar até que ponto este diferencia estilisticamente os géneros buffo e sério, o grau da maturação e a coerência da escrita dramática ao longo do seu percurso criativo, a maior ou menor relação com a música e a estética dos seus contemporâneos e muitas outras questões em aberto. A presente produção de L'Amore Industrioso, decorrente de uma nova revisão da partitura, virá certamente lançar mais alguma luz sobre a música deste insigne vulto da cultura portuguesa. Esperamos que contribua também para que esta alcance o lugar que merece no coração dos melómanos.

        L'Amore Industrioso foi objecto de três apresentações modernas, todas no Teatro de São Carlos, em Lisboa, com tradução do libreto por Maria Adelaide Soares Cardoso Cruz e revisão da partitura pelo maestro Ivo Cruz. A primeira coincidiu com a primeira vez que se ressuscitou no nosso tempo uma ópera antiga portuguesa e ocorreu a 28 de Novembro de 1943, por ocasião do 150° aniversário da fundação do teatro. A segunda vez teve lugar na temporada de 1967 e a terceira em 1980. "

Cristina Fernandes

        PORTO 2001 : Julho Dias 26 e 28 L´Amore Industrioso de João Sousa Carvalho, Estúdio de Ópera do Porto  Remix-Ensemble Casa da Mús.  Orquestra de Jovens com direcção de António Saiote. Encenação, cenografia e figurinos de Nuno Carinhas.