A janela e a façada ocidental da igreja
Texte de pedro Redol
Apesar da sua fama, a janela do capítulo pertence a um organismo mais vasto e complexo, pensado justamente para glorificar, mitificando, a personagem do rei D. Manuel. A fachada ocidental da igreja, inicialmente voltada para o exterior da velha fortaleza templária e depois subjugada por um novo convento renascentista contruído em redor da nave, era, de todas as fachadas exteriores, a mais carregada de significados. Nela assumia a heráldica um papel preponderante, aos seus conteúdos emblemáticos vindo associar-se uma infinidade de combinações de elementos naturais e artificiais, tratados com fantasia hiperrealista.
A fachada ocidental é lateralmente delimitada por dois volumosos contrafortes, cilindricos superiormente e poligonais na base. O conjunto é coroado por uma platibanda onde alternam a cruz de Cristo e a esfera armilar.
Ao centro da fachada desenvolve-se, exuberante, a janela, superiormente enquadrada por um remate quadrangular, idêntico a um alfiz muçulmano, tratado como uma peça têxtil franjada, aos quadrados. No eixo da janela, acima do escudo real, reaparece a cruz de Cristo, contrabalançada lateralmente por duas esferas armilares.
As margens da abertura propriamente dita são profusamente marcadas pela justaposição e entrelaçamento de troncos podados, correntes, algas, cordas, raízes de carvalho, alcachofras e guizos, numa montagem decorativista que, em algumas circunstâncias, recorda trabalho de ourivesaria da época ou as construções efémeras das festas cortesãs.
Suportando raízes de carvalho aos ombros, vê-se, na base, o busto de um homem de barbas com chapéu, recentemente identificado com Jessé, fundador da genealogia de Cristo, segundo a profecia de Isaías, abundantemente utilizada pelos escritores da corte de D. Manuel para explicar o destino providencial do monarca - que afinal tinha o mesmo nome que o Redentor: Emmanuel.
Os contrafortes laterais apresentam, na sua secção cilíndrica, o aspecto de troncos de carvalho e raízes, completas num deles e cortadas no outro. O contraforte sul é cingido por um cinto de exuberante fivela, acima do qual se vêem quatro homens de armadura com escudos de armas. O contraforte norte é abraçado por um colar de elos largos, soprepujado por três anjos igualmente portadores de escudos de armas.
De escala e colocação absolutamente invulgares são o cinto e o colar, identificáveis, respectivamente, com as insígnias da Ordem da Jarreteira e da Ordem do Tosão de Ouro, das quais D. Manuel era membro. A insígnia do Tosão de Ouro, conferida a D. Manuel por Maximiliano, imperador da Alemanha, é assimilável à cavalaria espiritual, por oposição à cavalaria mundana da Jarreteira. Esta oposição de reino celestial a reino terreal é confirmada pelo binómio reis de armas/anjos herádicos - detentores todos do estatuto de arautos – e pelo contraste entre raízes inteiras e raízes cortadas, desprovidas estas de ligação ao mundo terreno.
A fachada ocidental é horizontalmente atravessada por cordas, uma delas com peças circulares enfiadas que podem sugerir bóias.
Assim, o programa pensado para a fachada ocidental da igreja do Convento de Cristo apresenta D. Manuel como cavaleiro por excelência e salvador da Cristindade, situando-o num registo ambíguo entre o mundo terreno e o mundo extraterreno.
Semelhante discurso reaparece com toda a clareza na Crónica de D. Manuel, escrita por Damião de Góis, e na apresentação do monarca que o prior da Ordem de de Santo Agostinho, Frei Egídio de Viterbo, fez, em 1507, perante a corte papal de Júlio II.
O dispositivo alegórico de Tomar está presente em muitas outras encomendas artísticas manuelinas, embora nunca num grau de complexidade comparável.